Certa vez ouvi de um amigo uma parábola sobre dois rabinos que, durante uma viagem conjunta, colocaram-se logo após o jantar a discutir sobre a existência de Deus. Um acreditava que Deus ouve nossas orações e intervém na história. O outro, que Deus era distante e impassível. Por volta da meia-noite, a conversa não tinha nem sinal de acabar e estava acalorada. Quando passaram das três da madrugada, finalmente chegaram a um consenso: de fato, Deus não ouve nossa orações. Ponto final. Despediram-se e, então, foram dormir. Às 7 horas da manhã seguinte, antes mesmo do café, a caminho do refeitório, o rabino recém-convicto não poderia cruzar com visão mais surpreendente: seu colega de debate, o mesmo que lhe havia convencido de que Deus não nos ouve, estava no ponto mais bonito do jardim, de olhos fechados, posição contrita, ar sereno, orando. O passante não resistiu. Sentou-se atrás daquele até que ele abrisse os olhos e lhe perguntou: “Amigo, nós não havíamos concluído que Deus não ouve as nossas orações?” A resposta do rabino foi ainda mais surpreendente:

“E o que Deus tem a ver com as nossas conclusões humanas?”

Hoje temos a oportunidade de exibir as nossas conclusões humanas para centenas, milhares, quem sabe milhões de pessoas. Um público a que apenas os grandes oradores, os maiores palestrantes, estavam acostumados, hoje pode ser acessado, em segundos, por donas-de-casa, dentistas, estudantes, enfermeiros. Hoje todos somos geradores de conteúdo, somos todos, em maior ou menor grau, influenciadores.

O estrago que a banalidade, a rapidez e o alcance do nosso pensamento tornado público fizeram em nossa geração ainda está longe de ser medido. Mas já temos alguns sinais, no jeito como discutimos política, nossas relações de cidadania. O que, à primeira vista poderia ser entendido como um primeiro passo numa tomada de consciência (ei, hoje finalmente decoramos o nome de diversos deputados e senadores e começamos a entender mais ou menos como funcionam os três poderes!) é, na verdade, o retrato de tempos em que a política organizada substituiu as torcidas que antes se dividiam pelos competidores do Big Brother Brasil, da Casa dos Artistas ou dos festivais de música da TV Record. Sergio Moro é meu Chico Buarque, Jair Bolsonaro é seu Kleber Bam-Bam, Eduardo Bolsonaro é o Reginaldo Faria em Vale tudo, Lulalivre é o Supla cantando “Japa Girl”, Tábata Amaral é a namoradinha do Brasil etc.

E eles só são importantes enquanto matéria-prima pra que eu exiba nas redes sociais o quanto estou indignado com o que este disse ou como adorei como aquele respondeu. Ostentação de consciência política. Não importa o que eles estão fazendo com seus cargos eletivos, se é que estão fazendo algo, não sei. Importa o que pensam, importa seus argumentos, importam suas conclusões humanas que me ajudem a ostentar minha consciência, minha indignação, minha preferência, minhas conclusões humanas.

Parafraseando um dos meus autores favoritos, Donald Miller, há muito tempo a discussão deixou de ser sobre direita ou esquerda, sobre liberalismo ou assistencialismo, sobre previdência pública ou privada, sobre Lula livre ou preso e passou a ser sobre quem tem o argumento mais inteligente, mais devastador, sobre quem “cala a boca do entrevistador”, quem “lacra” mais e melhor. Isso é vaidade em seu estágio mais infantil, mais pernicioso, e quero calar essa vaidade em mim e desestimulá-la em todos os que estiverem ao meu alcance.

É claro que tem um aspecto coletivo nisso tudo, só que, mais uma vez, ele é totalmente discursivo, e totalmente narrativo. Há algumas semanas, o jornalista José Roberto de Toledo, do site da Piauí, notou as semelhanças na estratégia de comunicação do presidente Bolsonaro com a do presidente Trump a partir da pesquisa do Datafolha, segundo a qual o Brasil estaria rachado em três terços numericamente idênticos em relação ao atual presidente: 33% estão satisfeitos, 33% estão insatisfeitos, 31% o acham regular e 2% não souberam responder.

Toledo diz que, assim como fez o presidente Trump, Bolsonaro passa a vida inflamando o antagonismo entre as partes, politizando e polarizando tudo o que toca: uma marcha para Jesus se transforma em guerra de posicionamento político, uma nomeação à embaixada vira Fla x Flu, uma crítica à OAB se transformou numa discussão sobre o pai do presidente da ordem. Com os polos isolados, antagonizados e inflamados, destilando suas conclusões e indignações pelas redes sociais, é só escolher a minoria mais barulhenta, mais raivosa, mas interessante, mais virulenta. No caso dos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório, a polarização tem um efeito muito útil: tem derrubado, de cansaço, todos os que sonhavam com um debate razoável e consensual. Estes, têm deixado de comparecer às urnas. No Brasil, efeito semelhante, a tendência é que os votos brancos e nulos cresçam sem parar, como tem crescido.

Não foi Bolsonaro quem criou isso, foram as redes sociais. Lembro de uma apresentação sobre o Buzzfeed de muitas eras atrás, que defendia algo do tipo “nós fazemos conteúdo para malucos e não para gente normal”. Porque gente normal não compartilha um artigo longo e bem estruturado. Nós compartilhamos pensamentos curtos e fortes com os quais concordamos ou dos quais discordamos, adrenalizados prontos pra brigar ou pra correr. Dados, fontes, referências na lei, repertório, tudo isso era relevante nos tempos de jornais em papel, quem sabe no terceiro ou quarto parágrafo. Hoje, basta sua convicção, sua conclusão com força suficiente para grassar as redes sociais e você tem uma plateia, você tem trend-topic, você tem um presidente e um ministro.

Bolsonaro foi apenas o primeiro no Brasil a usar o potencial desse novo mundo, num país em que apenas 6% se informam por jornais e revistas, 37% por televisão e 43% por redes sociais. O primeiro com coragem suficiente para mandar às favas qualquer embasamento para falar sobre o Inpe, sobre tortura, sobre Amazônia, sobre nióbio, sobre diplomacia e apenas contar os likes e os compartilhamentos. Se isso te revira o estômago, espere só por 2022, com Dória, Huck e Bolsonaro na mesma corrida, com deep fake e hackers fuçando em celulares.

“Estamos em uma guerra civil, e numa guerra vale tudo”, li agora há pouco, de um adulto, justificando que um presidente zombe de alguém que perdeu o pai aos dois anos de idade. É isso. Nós queremos guerra. O papinho de pacificar o país, fugir da dicotomia entre direita e esquerda, buscar o entendimento, trabalhar com os melhores das diversas linhas de pensamento, foi varrido com humilhantes 1% dos votos. Sim, estou falando de Marina Silva, que veio de 21% em 2014 e quatro anos depois ficou atrás do Cabo Daciolo em sua cruzada anti-ursalista.

Lembrando que ela poderia ter mais do que 21% se o PT não tivesse alugado carros de som pelo nordeste para espalhar a fake news de que ela planejava acabar com o Bolsa Família. Imagine esse PT em 2022, com Dória Huck e Bolsonaro na mesma corrida, com deep fake etc etc.

Nós queremos guerra civil – ao menos no ponto em que entendemos “guerra civil” como uma aventura virtual jogada pelas redes sociais como uma espécie de Fortnite para adultos. Nós aprendemos a pensar e a nos mover com a cabeça das redes sociais. Nós não queremos pacificação, não queremos entendimento, não queremos Deus e não queremos o Brasil. Queremos só discutir sobre tudo isso e mostrar como meus argumentos são mais poderosos do que os seus.

Que figura patética e minúscula eu sou e tenho me tornado.

Da minha pequena, pequeníssima parte, queria tomar uma decisão pessoal de voltar a esse blog com mais frequência e usar as redes sociais cada vez menos para qualquer coisa que não seja divulgar meus trabalhos – é isso que o Facebook quer, e merece se tornar, certo? Um enorme Primeiramão multicolorido e digital. Estou também desabilitando esse poço sem fundo de egolatria e mal-entendidos chamado “área de comentários”, ignorando qualquer regra de SEO e limando espelho de carne que é o botão de curtidas. Quem quiser me escrever, use o contato@ricardoalexandre.jor.br que eu leio e prometo me esforçar para responder.

E conto com vocês, amigos que fiz nesses 25 anos de carreira para me ajudarem a me manter vigilante contra a sedução da vaidade das minhas próprias conclusões.

 

* The Stars are indifferent to Astronomy é o nome de um disco da banda americana Nada Surf de 2012. Guardo o disco até hoje basicamente por causa do título que, de alguma forma, me lembra da parábola dos dois rabinos. As estrelas seguem indiferentes ao quanto ficamos aqui discutindo sobre elas.

ando por elas, fazendo inimigos por conta dela. Que tempos malucos.