Na edição de setembro da revista Trip, a tradicional trip girl é uma transexual. É a primeira vez que uma “mulher não-genética”, na definição politicamente correta, ocupa o espaço. Na definição fria do Aurélio, transexualismo é o o “desejo que leva o indivíduo a querer pertencer ao sexo oposto, cujos trajes pode, até, adotar, além de esforçar-se tenazmente no sentido de se submeter a intervenção cirúrgica visando a transformação sexual”. Segundo a própria trip girl, a modelo Carol Marra, “a transexual não se conforma com a sua genitália, daí a necessidade da cirurgia”, o que a distinguiria da travesti, por exemplo.

O ensaio da Trip é geralmente acompanhado de um texto de leve tom poético que apresenta a modelo, mas desta vez optamos por produzir um depoimento em primeira pessoa, da própria Carol. Como diretor de redação da revista, tive acesso ao texto em primeira mão e o impacto que ele causou em mim não diminuiu após o lançamento da revista, muito pelo contrário. Em determinado momento, Carol, que é modelo da agência 40 Graus, conta sobre a discriminação que sofre entre os homossexuais. “Os héteros me adoram, mas sofro bastante preconceito mesmo no mundo da moda, onde quase todos são gays”, ela escreveu. O texto de Carol tem vários outros momentos intrigantes, que falaram muito comigo a respeito de como somos todos cindidos, eternamente insatisfeitos com o que temos e somos, como estamos sempre em busca de aceitação e aprovação, como definitivamente somos uma geração viciada em felicidade. Mas esse trecho, em que ela relata o preconceito que sofre da própria comunidade gay, foi mais assombroso. “O próprio gay tem preconceito do outro. Gritam ‘Vai passiva!’ como se fosse demérito.”

Como um homossexual, que cresceu e luta diariamente contra a intolerância, pode se armar de intolerância contra uma transexual? Como um gay ativo que luta para que a sociedade reconheça sua união com um passivo pode usar do adjetivo como uma ofensa? Aonde os muitos anos de campanha contra a intolerância estão nos levando? Aonde nos levarão? Será que somos hoje uma sociedade realmente mais tolerante do que na juventude dos nossos pais? Não sei, não sei, não sei de nada, mas desconfio de algumas coisas.

Em primeiro lugar, pensando bem, não vejo verdadeiramente uma campanha de educação sobre respeito às diferenças. O que há, na verdade, é uma tentativa de substituição cultural, e muito pontual e especifica: sai a idéia da heteronormalidade e entra a idéia de que a questão de gêneros é uma construção social, de que não há verdadeiramente homens e mulheres senão como modelos sociais impostos ao longo da história. Isso implica em outra substituição de paradigmas que avança a passos largos: o de que não há verdadeiramente heteros nem homossexuais e que, em futuro breve seremos todos bissexuais, nos relacionando independentemente de gênero. Na revista Nova escola, o professor Luiz Ramires Neto, mestre em Educação pela USP e um dos diretores da organização não-governamental Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor (Corsa), de São Paulo afirma que “essa orientação tem relação direta com o desejo, e não é premeditada, é espontânea.” Mas logo em seguida, o próprio Ramires afirma que “não há análises conclusivas sobre o assunto”. Não há análises, não há provas, há apenas um modelo mental tentando se impor sobre outro. Não me parece uma diversidade tão diversa assim.

Em segundo lugar, porque a luta pelos direitos dos homossexuais praticada no Brasil (por mais que eu defenda todos os direitos civis dos homossexuais, e de fato defendo) não se ancora na diversidade, mas na imposição dos direitos de um grupo sobre o direito dos outros grupos. Na verdade é assim que a democracia funciona no Brasil: coloque os representantes do seu grupo em Brasília, sejam usineiros, ruralistas, evangélicos ou homossexuais, e esteja certo de que eles vão agir o mais egoísta e truculentamente possível. Se os índios têm interesses diferentes dos mineradores, eles que elejam seus deputados e subam no ringue.

O controverso kit anti-homofobia do MEC, por exemplo. Será que ele é eficiente no intuito de plantar o respeito, a cordialidade e a tolerância no coração dos estudantes? Ou será que ele apenas assegura os direitos de uma minoria que conseguiu se articular politicamente e se instalar na mídia com um discurso emprestado das lutas pelos direitos civis? A mim, parece que estamos ensinando que devemos engolir nosso preconceito contra negros, homossexuais e crossdressers, que são minorias articuladas que “lutaram por seus direitos” e que conquistaram sua “representatividade” na televisão e na política. Ainda bem que nossos estudantes ainda podem destilar sua intolerância contra gordinhos, contra os bolsistas que nunca viajaram para Orlando, contra os que têm sotaque diferente, contra os que usam óculos ou aparelhos ortodônticos e, na universidade, contra os virgens e os criacionistas. Na escola da minha filha, uma garotinha era discriminada por causa do cabelo crespos, por exemplo.

O que mais me assusta é facilidade com que criamos artifícios e lorotas diversas para nunca assumir que somos todos preconceituosos, egoístas, gregários, que olhamos apenas para nossos próprios interesses e para os interesses dos poucos que pensem igual a nós. E me assusta a maneira acrítica com que compramos um discurso pronto sobre tolerância e igualdade que, no fundo, não nos faz mais tolerantes nem acolhedores. Ri nervosamente quando, durante a última Parada Gay, uma mãe foi entrevistada com sua filhinha (uns 4 ou 5 anos, eu arriscaria) dizendo que estava ali para “ensinar à filha a importância da diversidade”. Pelas roupas, pelo óculos escuros e pelo jeito como falava, parecia que aquela mãe havia adotado o clichê vendido pela mídia, muito mais confortável do que matricular sua filha num colégio menos elitista, morar em uma rua em que as classes interajam mais frequentemente e, quem sabe, deixar que a empregada doméstica sente-se à mesa com a família. Diversidade discursiva, de longe, é fácil. Respeito aos diversos que surgem na minha trajetória de vida, na minha calçada, na minha cozinha, na minha passarela, é outra coisa. É claro que eu também estava sendo preconceituoso contra aquela mãe, por causa de sua roupa, de seus óculos e do jeito como falava. Miserável homem sou.

Uma cruzada contra a intolerância, quando é baseada nos meus interesses, em vez dos interesses comuns, só produz mais intolerância. Se os gays querem o direito de se casar, os evangélicos querem assegurar o direito de dizer que os gays vão para o inferno. Afinal, você também tem de lutar por seus direitos, não é? A briga entre os deputados Jean Willys e Marta Suplicy, por exemplo, na qual a aliada histórica nos homossexuais foi criticada duramente durante a votação da PLC 122 por tentar harmonizar outros direitos além daqueles dos homossexuais, é um bom resumo do quadro. Hoje são os gays, amanhã os evangélicos, depois os são-paulinos, os ateus, os nordestinos, até que estejamos todos com minas terrestres espalhadas em cada metro quadrado desse país, esperando pelas explosões.

Martin Luther King, que, entre tantos méritos, ensinou a Malcolm X que não era com intolerância que se combatia a intolerância, tinha uma frase perfeita: “o amor é a única arma capaz de transformar um inimigo em amigo”. Luther King era cristão. Sinceramente, não sei se há outra filosofia ou tradição religiosa que propague que o Criador do universo “esvaziou-se de si mesmo”, despiu-se de seus direitos de Deus para que fosse cuspido no rosto e assassinado por amor. Mas quando São Paulo nos incentiva a exercitar em nós “o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus”, fica mais fácil entender a diferença entre Martin Lutehr King e os maquiadores e cabeleireiros que humilharam Carol Marra.

O caminho da justiça nunca foi ensinar nossos filhos a lutar por seus direitos, mas a abrir mão de seus direitos em prol da justiça. Considerar o outro superior a si mesmo, negar-se em prol daquele que não é você. Tolerância, respeito pelas diferenças, é isso. Vivê-la plenamente, no dia a dia, não é apenas difícil. É sobrenatural.