Apareceu na minha timeline no Facebook um vídeo cujo objetivo era revestir de razoabilidade o que o candidato Jair Bolsonaro disse no “Roda Viva” da semana passada, que “os portugueses nem pisaram na África”. Para quem não viu, essa foi uma das declarações do candidato para justificar seu raciocínio anticotista. Afinal, segundo ele, se os próprios negros teriam escravizados negros, logo, a sociedade branca brasileira não teria dívida alguma com os negros. “Eu não escravizei ninguém”, disse.

O vídeo até que é equilibrado, embora baseado no “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de Leandro Narloch, que é uma espécie de bíblia da nova extrema direita brasileira que finalmente descobriu que fora enganada-por-todos-os-historiadores-esquerdopatas-das-escolas-ideologizadas do mundo. Mas, embora seja equilibrado, compartilhado fora do contexto em que foi criado, aparenta dar certa razão a Bolsonaro. Por isso, peço licença para não compartilhá-lo mais uma vez, até porque não é o assunto em si, aqui.

O assunto em si, aqui, é a surpresa de ver Laurentino Gomes envolvido nele. Laurentino, jornalista best seller célebre por seus livros históricos que, aliás, trabalha atualmente numa série de livros a respeito da escravidão no Brasil. Conheci o Laurentino quando ele era executivo na Editora Abril e, sabendo da seriedade dele, achei pouco provável que ele estivesse confortável em ter suas palavras usadas assim. Fui até seu Twitter e veja o que eu achei.

1. Laurentino, sempre cortês, começa com um tom de “não é bem assim”, tentando mostrar que dizer que “eu não escravizei ninguém” é tão simplista quanto dizer que “eu escravizei alguém”:

 

2. Laurentino publicou uma sequência de tuítes no qual chamava, delicadamente, de “tremendo anacronismo” a ideia de que africanos seriam tão (ou mais) responsáveis pela sua própria escravidão. Laurentino reforçou dizendo que desde aquela época a questão era sempre um grupo dominando e obtendo vantagens sobre “o outro”:

3. Entretanto, os tempos não estão para delicadezas de argumentos. Um seguidor perguntou na lata “então quer dizer que negro escravizou negro mesmo”: 

4. Logo em seguida, apareceu aquele que precisa de alguém em quem depositar a responsabilidade por suas próprias opiniões. “Laurentino, afinal a sociedade branca TEM OU NÃO uma dívida com os negros”? Laurentino precisou ser mais direto, cada vez mais direto:

5. E apareceu aquele outro personagem incrível surgido no Brasil de 2018: o cidadão de bem preocupado com os caros barões:

6. Eu queria aproveitar pra dizer que Laurentino é cristão de tradição evangélica. Digo isso porque o próprio Bolsonaro diz ser cristão. Entretanto, como Laurentino é dado à palavra escrita, ele sabe que o cristianismo é aquela tradição que defende que “a religião verdadeira é visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações” (Tiago 1.27). Ou seja, defender os vulneráveis, e não adotar contra eles a postura “eu não enviuvei ninguém” e “eu não abandonei nenhum filho”:

7. Por fim, vale o registro de Laurentino citando Joseph Conrad ao saber do vice de Bolsonaro. É um homem elegante, sem dúvida:

Pra guardar e mostrar para seu amigo que acha que “até que o Bolsonaro tem razão”.