A politização da trapalhada
[Você pode considerar este post como uma análise totalmente atrasada dos eventos relativos aos festivais SWU e Lollapalooza Brasil ou a capela sistina dos textos para testar sites. Seja generoso 😉 ]
Quando comecei a escrever profissionalmente, no começo dos anos 1990 (e olha que já havíamos caminhado muitas jardas desde a abertura política e o Rock in Rio), o jeito de assistir a atrações internacionais era esperando grandes festivais. Hollywood Rock, principalmente; Free Jazz para os mais sofisticadinhos, e um ou outro caso especial que vinha para estádios com status de divindades gregas. Antes que eu começasse a viajar e conhecer os festivais internacionais, olhava para as páginas de shows semanais do New Musical Express ou do Melody Maker e pensava: porque o povo do estrangeiro vai a festivais se pode assistir todas essas bandas, a qualquer dia da semana, em condições muito melhores de som, luz, meteorologia e higiene?
Foi meu amigo e herói Camilo Rocha, caminhando pelas ruas de Reading,a Itatiba inglesa, que me revelou: as pessoas vão pelo evento. Pela festa. Pela lama. Pelas barraquinhas montadas na entrada da fazenda. Pelo camping montado na colina. Pelo tanque de guerra legítimo estacionado na frente do palco de música eletrônica onde meninos dançavam de terno e gravata ou vestidos de ursos (sério). Pela tenda que exibia filmes underground 24h por dia, ou pelo chill-out de alguma megastore que permitia ouvir música nos fones de ouvido relaxando nas poltronas. Isso caso algum dos quatro ou cinco palcos de música não interessasse. Comprei um exemplar daquela coletânea Psychedelic Psauna numa feira de discos de vinil dentro de um desses festivais e minha vontade era voltar para o hotel para não correr risco de quebrar o vinil duplo. E, claro, festival também é para estrangeiros feito eu, que vinham de toda a Europa e resto do mundo pra assistir a todos os shows que chegariam a seus países nos anos seguintes. Lembro de ter cruzado o Zé Antonio Algodoal, ex-Pin Ups, num show (Sonic Youth?) e nos cumprimentamos casualmente como se eu estivéssemos na Rua Augusta.
Com a baixa do dólar e a baixa do mercado mundial da música, com a Christine Lagarde garantindo que estamos protegidos da crise, o Brasil virou destino inescapável de qualquer artista do mundo, de qualquer escalão. Bandas underground fazem turnês pelo interior de São Paulo, festivais internacionais acontecem no mesmo mês – no mesmo dia, às vezes. O U2 não está mais fazendo um favor em tocar aqui, e o Paul McCartney sabe bem a diferença entre São Paulo e Buenos Aires (as bexigas brancas durante “Hey Jude”, claro). Não somos mais vira-latas, não vamos mais a festivais catar migalhas do circuito de shows internacionais.
Agora, tem que ver se, apesar de deixarmos a síndrome de vira-latas, a síndrome de vira-latas deixa a gente.
Aconteceu de chover aquela chuva de festival de rock na segunda noite do festival SWU, em 13 de novembro, em Paulínia. Tiveram de atrasar as atrações em duas horas, o que teria deixado os técnicos de som em polvorosa. E o Ultraje, o primeiro a subir ao palco depois que o vento e a chuva acalmaram, foi abordado pela equipe de som do Peter Gabriel com a ridícula sugestão de que diminuíssem seu show para 30 minutos – e ainda ameaçaram cancelar o show do ex-Genesis, caso os brasileiros não concordassem. A discussão descambou para a porrada e, claro, Roger subiu ao palco furibundo, dizendo que “os gringos acham que podem cagar na nossa cabeça”. E ainda “dedicou” o hit “Filho da P*” ao inglês. Eu faria o mesmo, se tivesse alguma música com palavrão no refrão, talvez fizesse pior. Talvez até reclamasse no Twitter.
Mas fico espantado que a discussão tenha ultrapassado o primeiro pedágio da Anhanguera. Festival é sinônimo de roubada e é preciso uma disposição e um fair-play que eu não tenho mais – imagine então se têm o Roger, Peter Gabriel, respectivos técnicos, Duran Duran, Chris Cornell, Lynyrd Skynard (Lynyrd Skynard!)…
Nos dias seguintes, a discussão cresceu, repercutiu mais do que os shows (natural), ganhou fogo com o pedido de desculpas de Gabriel himself e, curiosamente, ganhou contornos patrióticos. O texto do amigo Pedro Alexandre Sanches é especialmente interessante como resumo da politização dos problemas da chuva e do vento.
Engraçado que me lembrou a confusão entre as bandas Elma e Mombojó no início do ano. Ainda bem que nenhum dos dois era estrangeiro, para que a coisa não descambasse para a mesma patriotada fora de hora.
Não deu uma semana e o ex-músico Lobão veiculou um vídeo pretensamente polêmico sobre sua recusa em participar da primeira edição brasileira do festival Lollapalooza. “Geralmente o artista que vai fechar é aquele que tem mais sucessos”, supôs ele. “E esse não é o critério, se não eu teria de fechar a noite”. Hum-hum. “Assim como eu estou aqui dizendo que eu estou fora, eu faço aqui uma convocação de interesse público aos meus colegas artistas brasileiros que não façam essa participação”.
Os Racionais MC’s, que não têm lá muita fama de facilitar na negociação com playboys, não viram problemas nas propostas que Lobão viu. Não sei quais são as cláusulas humilhantes do contrato, mas aposto, fácil em cachê abaixo do normal, pouco tempo de palco, pouco controle de som, show sob a luz do dia e a certeza de tocar antes de artistas bem menos famosos/importantes/educados/históricos do que eles. Tipo festival, sabe? Esse lugar em que as pessoas vão para pular na lama, e não para ouvir sua grande arte.
Lobão tem todo o direito de não se meter em roubada. E eu queria ter o direito de não ser inundado com gente transformando as trapalhadas de um mercado cada vez menor e mais caseiro, em política.
ps: para quem venceu todos os parágrafos e chegou até aqui, sugiro este resumo, do Matias, que se admira: “É sério que é esta a discussão?”
pps: ou o cartum abaixo, do gênio Arnaldo Branco. Aliás, nunca imaginei que ficaria com saudade das polêmicas do Caetano.
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