O proibidão do Tintim
Dos 23 álbuns que Hergé (1907-1983) criou para seu personagem Tintim, 20 foram publicados entre as décadas de 1930 e 1950. Nos anos 1960, especialmente, Hergé parecia mais interessado em desbravar o cinema, a publicidade e os produtos licenciados do que em produzir novas aventuras do jovem repórter para o papel. A Guerra Fria, de certa maneira, transformou as aventuras colonialistas de Tintim em um argumento tão anacrônico quanto um episódio de, digamos, Os Perigos de Nyoka. Faz sentido que o personagem só tenha recuperado o fôlego depois de Indiana Jones, com quem guardava uma série de semelhanças óbvias. Não por acaso, foi nessa época pós-Indy eu descobri Tintim e por ele enlouqueci – e Spielberg diz a mesma coisa.
Os anos 1970 só viram um único novo álbum de Tintim chegar às livrarias: Tintim e os Pícaros, de 1976, repleto de referências políticas às ditaduras latinas. Nas entrevistas de divulgação que concedeu na época, Hergé contou que já planejava a aventura seguinte do repórter. Seria um projeto bem mais radical, todo ambientado dentro de um aeroporto. Essa ideia (nunca concretizada) escondia o impasse criativo que se apoderava do genial quadrinista belga já fazia anos.
Cansado do ritmo industrial de produção, cada da vez menos interessado no (realmente desinteressante, àquela altura) mundo dos quadrinhos mainstream, cada vez mais interessado em arte moderna, Hergé começou a planejar os próximos passos de Tintim considerando as acusações de misantropia, colonialismo e alienação que o rondavam. Celebrou os 50 anos do personagem (com direito a homenagens de Andy Wahrol), descasou, casou-se de novo, estudou pintura com Louis Van Lint, viajou muito (em 1971 foi aos Estados Unidos pela primeira vez) e, artisticamente, viu-se andando em círculos.
A espiral chegou a tal ponto que Hergé começou a considerar a possibilidade de matar Tintim, especialmente quando, na virada para os anos 80, adoeceu e entendeu que, de um jeito ou de outro, a série iria terminar em breve. (A natureza obscura de sua doença deu vazão a boatos de que ele havia contraído o vírus HIV numa transfusão de sangue). Foi com esse pano de fundo caótico que ele preparou 160 páginas de rascunhos do que seria Tintim e a Alfa-arte, desde o início planejada como a última aventura da série.
Só que Hergé morreu em 3 de março de 1983, deixando A Alfa-arte inacabado. As 160 páginas iam de estruturas definitivas a simples rabiscos e listas de idéias anotadas. Em 1986, a Fundação Hergé convidou alguns experts para editar 44 páginas a partir do material bruto e lançou Tintin et l’alph-art pela editora Casterman, o último álbum oficial de um dos maiores ícones do século 20. A edição brasileira está em catálogo pela Companhia das Letras.
A história (ou o que dela se consegue entender) é mesmo uma guinada brutal no estilo dos 23 livros anteriores. Em vez das aventuras intercontinentais repletas de correrias e exotismos, Alfa-arte é centrada no universo do comércio de artes e falsificações, entrecortada por um falso guru inspirado em Fernand Legros e uma seita muito estranha. O último quadrinho da última página rascunhada por Hergé, por sinal, é pra lá de intrigante: o vilão Ramó Nash ameaçando Tintim com uma arma, numa situação aparentemente insolúvel para o loirinho. Hergé ia mesmo matar seu personagem? Seria assim o fim da série? Impossível saber.
Mas bom para especular – e foi o que os fãs fizeram. Em 1989, um misterioso álbum assinado por um tal “Ramo Nash” começou a circular entre os fãs europeus, com acabamento similar ao dos clássicos oficiais da série As aventuras de Tintim e uma tentativa de concluir a história inacabada por Hergé. A brincadeira teve certa repercussão mas foi universalmente considerada um pastiche infeliz e caiu no esquecimento. Em maio de 1991, entretanto, um cartunista mais inspirado, um canadense de 23 anos chamado Yves Rodin, apareceu com uma nova versão de Tintim e a Alfa-arte, concluída após quatro anos de trabalho minucioso, procurando concluir os esboços originais e dando um desfecho à história que não faria feio junto à bibliografia oficial.
A qualidade era tanta que Bob de Moor, lendário colaborador de Hergé, entrou na história oferecendo apoio para que o álbum fosse reconhecido pela Fundação Hergé e publicado oficialmente como “Uma homenagem a Hergé”. Ironicamente, depois de muita discussão, os detentores dos direitos de Tintim consideraram o resultado tão bom que julgaram inapropriado que uma obra tão bem acabada chegasse às livrarias – seu temor era o de que os fãs entendessem que a série de Tintim pudesse continuar nas mãos de outros autores, o que contrariaria a vontade expressa de Hergé.
No final das contas, a vontade do criador de Hergé foi respeitada, Rodier foi reconhecido como um grande quadrinista e seu pastiche atravessou o mundo, sob vistas grossas da Fundação Hergé. O canadense chegou a anunciar um projeto mais ousado, o de criar um álbum completamente novo em cima do argumento do aeroporto, mas ficou com medo da confusão (especialmente após a morte de De Moor, em 1992).
A maior parte dessa história maravilhosa eu descobri no igualmente maravilhoso blog Tintim por Tintim que foi a profundidades insondáveis pra falar de Alfa-arte, com direito a entrevistas, detalhes ultranerds e, jóia da coroa, uma tradução exclusiva do pastiche de Rodier inteirinho. Eles prometem há um bom tempo um pdf completo da obra, e eu mesmo estou nessa fila. Mas enquanto isso dá para curtir Tintim e a Alfa-arte online aqui.
Belo texto. Agradeço pelas referências e elogios ao meu humilde blog. )”)