“Simonal”, o filme, os diversos simonais e um único Brasil
Antes de tudo, transparência: meu nome aparece nos créditos de Simonal, o filme, como “consultor histórico”, porque foi o mais próximo que encontramos de definir minha colaboração na produção. Para ser mais específico, me envolvi logo no começo dos trabalhos, por volta de 2014, fazendo sugestões ao primeiro roteiro e participando de encontros com a equipe inicial, sempre com o intuito de localizar nos diálogos e situações algo próximo do Simonal que eu descobri durante os trabalhos na biografia Nem vem que não tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal. E voltei a colaborar, depois de terminadas as filmagens, durante a fase de montagem, na busca por encadear os fatos e ser tão fiel à história quanto possível ou desejável.
Mas é natural que me perguntem a respeito do filme. É bom? É fiel ao livro? Fabrício é fiel ao Simonal que você pesquisou? Tem mais liberdades com a história da música brasileira do que o Bohemian Rhapsody teve com a do Queen?
Este texto é, em parte, para responder sobre isso, em parte para lembrar que, quem quiser mergulhar na história por mais de 90 minutos, que pilantragem, deve correr para apoiar a campanha de financiamento coletivo do meu livro Nem vem que não tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal. Olha eu falando sobre isso no vídeo abaixo:
A primeira coisa importante a respeito de Simonal, o filme, é a decisão pétrea do diretor Leonardo Domingues em fazer um filme pop e acessível. Você – como alguns de meus amigos e até eu mesmo em muitos momentos – pode pensar em diversos outros ângulos e abordagens sobre a história do cantor. Meu ângulo favorito seria a dicotomia entre o “Pai João” da infância, o menino pobre negro e tímido, e o “Simona” dos grandes palcos, o Todo Onipresente da Pilantragem. Havia algumas pinceladas desse dilema em certas versões do roteiro e até em algumas das montagens finais. Eu, da minha pequena área de influência, pisaria ainda mais fundo nele, mas a proposta era ter um filme para o grande público brasileiro, e não um drama existencial ou um filme cabeça para ser discutido na saída do Belas Artes. Simonal é um filme para você, sua mãe e todo mundo assistir junto. É fiel ao Simonal porque não se deixa seduzir pelo que o próprio cantor chamava de “milonga do bom gosto” e ainda assim tem bom gosto pacas.
A segunda coisa importante é algo que descobri, latente, durante a divulgação de Nem Vem Que Não Tem, minha primeira e (até agora) única biografia: a delicadeza e a complexidade de transformar gente de verdade, multidimensional, em achatadas figuras à serviço de um roteiro para ser lido ou, neste caso, assistido. No caso de Nem Vem Que Não Tem, que lançou mão de dezenas, talvez centenas de personagens, esse achatamento é mais difuso mas muito mais cruel, especialmente quando a história cruza o caminho de quem não é artista e nem optou por performar uma persona artística. Jamais vou me esquecer de um meio-irmão de Simonal que me encontrou no Leblon, livro em mãos, perguntando com a cabeça baixa, a respeito do seu Lúcio retratado no livro. Seu Lúcio de Castro era o pai daquele senhor e a decepção de descobrir facetas até então desconhecidas de alguém a quem amava era indisfarçável. Mas livro é uma história para ser contada ao longo de uma semana. Imagine resolver tudo em 90 minutos de filme. Muita coisa fica de fora, muita complexidade precisa ser simplificada, muita aleatoriedade precisa ser revestida de uma lógica que nem sempre a vida real tem.
Assim, há diversas soluções em Simonal, o filme, sem as quais o longa simplesmente empacaria. O ápice dramático da vida do cantor – seu envolvimento com a polícia política da época – é registrado de forma muito mais linear do que a confusa e rocambolesca história verdadeira. O processo de isolamento de Simonal, que se cercou de aproveitadores e puxa-sacos enquanto afastava os colaboradores, conselheiros e amigos, no filme é resolvido em dois ou três diálogos curtos (mas fundamentais). Sua incansável busca por semear a antipatia de diretores de TV, músicos e formadores de opinião também surge dedutível, mas não explícita. O relacionamento de Simonal e Tereza, fio condutor de todo o filme, também tem idas-e-vindas e nuances de ambos os lados, crises de ciúme mútuo e eletrodomésticos destruídos como nenhum longa-metragem daria conta de registrar.
Talvez o ponto principal a respeito do filme corra à sua revelia. São os olhos de quem o assiste, o chão sobre o qual estão fincadas as cadeiras do cinema em que ele é exibido. Quando eu escrevi a biografia, entre 2008 e 2009, era preciso investir longos trechos para reconstituir o ambiente político de uma país dividido, de uma nação capaz de retaliar e enterrar quem estivesse do lado “errado” da história. Quando Leonardo Domingues começou a trabalhar no roteiro, quando tivemos nossos primeiros encontros, era impossível supor que o filme fosse ser lançado em um país governado por capitães e generais, onde o presidente vê a tortura como algo eventualmente aceitável, onde a verdade é estabelecida em delações premiadas, onde fake news são expedientes perfeitamente normais para reforçar nossas convicções ideológicas, onde uma nova geração se levanta colocando em dúvida até mesmo se houve ditadura militar no Brasil.
O que deveria ser um drama pessoal de tempos que não voltam mais é lido em sua estreia, pouco tempo depois, como uma metáfora a respeito de um Brasil inclemente do qual não só não conseguimos nos livrar, como optamos por reviver.
Por fim, há o Simonal de Fabrício Boliveira. “Eu não pareço com o Simonal, né?” – foi a primeira coisa que ele me disse, no exato momento em que nos vimos pela primeira vez. Ou seja, Fabrício sabia desde o primeiro momento que sua missão seria transformar essa indisfarçável verdade em trunfo. Assim, assumiu que estava fazendo a sua leitura de Simonal e, com isso, fez o que faria de toda forma: escolheu o Simonal mais interessante sobre o qual pudesse criar dramaturgia.
E criou, sem a preocupação em encarná-lo mediunicamente como Rami Malek fez com Fred Mercury ou Martin Landau com Bela Lugosi. Exatamente por isso, saiu-se com um Simonal muito mais vivo e magnético do que, digamos, o Erasmo Carlos de Chay Suede, o Tim Maia de Babu Santana ou mesmo a Elis de Andreia Horta. Mas é o Simonal de Fabrício, um personagem capaz de discutir sobre racismo com um delegado do Dops – em vez de apenas chegar distribuindo autógrafos e posando para fotos, como certamente o Simonal mediúnico faria. O Simonal de Fabrício é um Simonal com uma visão século 21 da questão racial – e não com a visão século 20 de que a fama e a riqueza seriam capazes de transformar um “crioulo” em branco, comprando carangos de tanto trabalhar, trabalhar.
Simonal, o filme, é fiel a Simonal porque, como o Simonal de carne e osso, permite diferentes leituras de uma tragédia humana, sobre a quintessência das ilusões do showbiz e do fiapo de mobilidade social brasileira.
Lembro quando um amigo, jornalista bamba da área da economia, voltou com os manuscritos de Nem vem que não tem que eu lhe havia confiado, jogou na minha mesa e resmungou: “Que merda, a elite cultural brasileira”. Para mim, a história de Simonal não era essa. Era a história da frágil sedução das oportunidades do estrelato. Mas pode ser, também, perfeitamente, a história do sam cooke brasileiro obcecado por construir seu império de empregados brancos como Fabrício materializou na tela, a história do primeiro e desajeitado líder do orgulho negro nacional.
As histórias são muitas, muito diversas entre si, mas a vítima é sempre a mesma: o menino “preto, pobre e feio” da Favela da Praia do Pinto. É a história de Simonal, o filme, de Nem vem que não tem, o livro, de Ninguém Sabe o Duro Que Dei, o documentário, e a história de certo país tropical que, alguém cantou um dia, era abençoado por Deus e bonito por natureza.