Ciência, religião e Ricky Gervais
Que ninguém misture as bolas, por favor: Ricky Gervais é um gênio, The Office é o máximo e o tweet do início da semana (“Prezada Religião, esta semana eu joguei um cara do espaço em segurança enquanto você atirou na cabeça de uma criança que queria ir para a escola. Abraços, Ciência”) uma ótima, ótima piada. Porque é provocativa, bem sacada, bem escrita e surpreendente. Mas, sem querer virar debatedor de piada, queria aproveitar este território para separar outras bolas.
Gervais está se referindo ao Mission to the Edge of Space, evento patrocinado por uma marca de energéticos que mandou um austríaco para o espaço na tentativa de bater o recorde de queda-livre: 39 quilômetros. Confira o vídeo no ultra-patrocinado site oficial. E está se referindo à paquistanesa Malala Yousafzai, uma adolescente ativista que sobreviveu a um atentado há alguns dias. Leia essa horrível história aqui. Evidentemente, entre pular estratosfera adentro e ser baleado, penso que não há ninguém capaz de defender a segunda opção, muito menos eu.
Mas sinceramente não entendo o paralelismo que opõe religião (ou mesmo a religiosidade) à ciência, como se a última fosse sinônimo de “bem” e a primeira de “mal” ou como se ciência fosse igual a sabedoria e religião igual a estupidez.
Não são. É perfeitamente possível ser um cientista estúpido e um religioso sábio e inteligente, assim como é perfeitamente possível ser um cientista brilhante que envia pessoas ao espaço e um religioso sanguinário e imbecil que atira em quem pensa diferente dele. Não foi a Dona Religião que atirou em Malala, foi a Srta. Estupidez.
(Note que eu não estou sequer entrando na diferença entre espiritualidade e religião, acho que por hoje é perfeitamente possível usar a religião, ou a religiosidade, para o raciocínio).
Quando eu vejo o dr. Karl Heinz Kienitz, falar, não parece que estou diante de um estúpido. Kienitz diz que “As pessoas opõem a fé à ciência porque não possuem conceitos consistentes de ciência e fé. Confundem, por exemplo, fé, religião e teologia ou confundem ciência com plausibilidade. Ou possuem motivos ideológicos para dogmatizar uma incompatibilidade entre fé cristã e ciência, que de fato não existe”. Leia a entrevista toda aqui.
Quando vejo o filósofo William Lane Craig debatendo com Christopher Hitchens, não me parece nem de longe um encontro entre um estúpido e um mestre. Richard Dawkins deve pensar o mesmo, porque vive se negando a debater com Craig. Existe aquele vídeo clássico em que Craig desembesta a falar sobre porque a ciência não pode provar tudo, diante de um nocauteado Peter Atkins (professor em Oxford), e ao menos para mim o vídeo (abaixo) não parece que Craig seja do tipo capaz de atirar numa adolescente por falta de argumentos razoáveis.
Admiro Craig, mas seu trabalho de apologista me interessa muito pouco. Neste episódio registrado em vídeo, especificamente, me interessa sua tentativa de deslocar a discussão para outro ponto: nem a ciência nem a religião podem se arvorar a dizer-se porta-vozes da verdade absoluta. Passemos para outros pontos, por favor. Nem a ciência nem a religião são “o bem” ou “a verdade”, nem um nem outro são “o mal” ou “a ilusão”.
A ciência criou a boma atômica que matou bem mais do que uma criança paquistanesa (Malala sobreviveu, aliás). Criou os alimentos enlatados e os corantes que disseminaram a epidemia de obesidade que vitima hoje um terço das crianças americanas. E que os religiosos criaram a faculdade de Harvard e as “santas casas” que hoje chamamos de hospitais. E o que isso prova? Quase nada, além de que somos todos sedentos por uma discussão cretina e para mostrar aos outros como estamos certos, enquanto alguns de nós tomam para si a missão de olhar para o próximo.
Essa discussão entre religião e fé me dá uma preguiça lascada. Porque minha fé não repousa no mesmo compartimento mental que minha inteligência – logo, sequer entendo como uma pode se opor a outra. Estou muito satisfeito com a posição que emprestei do escritor Don Miller. “Mais cedo ou mais tarde você simplesmente descobre que há alguns caras que não acreditam em Deus e podem provar que ele não existe e alguns outros caras que acreditam em Deus e podem provar que ele existe – e a esse ponto a discussão já deixou há muito de ser sobre Deus e passou a ser sobre quem é mais inteligente; honestamente, não estou interessado nisso”.