Durante as pesquisas para meu segundo livro Nem vem que não tem: A vida e o veneno de Wilson Simonal, uma das perguntas que eu deveria responder, era sobre como surgem os boatos. No caso do Simonal, como surgem lendas urbanas baseadas em boatos que foram, um dia, baseados em fatos. Pra quem ainda não leu o livro: em 1971, Simonal foi acusado de haver mandado torturar um ex-funcionário para obter dele uma confissão de desvio de dinheiro. Anos depois, o “fato” que se noticiava, e pelo qual Simonal foi alijado da cultura brasileira, era o de que ele trabalhava para o regime militar, prestando serviço à ditadura delatando outros artistas para que estes fossem torturados e, eventualmente, exilados.

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Claro que boatos não surgem do nada. O ex-funcionário de Simonal foi torturado nas dependências da polícia política da época, o DOPS. O livro traz declarações e documentos em que o próprio Simonal dava a entender que ele, de alguma maneira nebulosa e jamais explicada, havia “colaborado” com a “revolução” de 1964. Mas daí para ser alcaguete havia uma distância tão grande quanto a que separa o fato do boato.

Nas últimas semanas, eu acompanhei intrigado a “evolução” de duas notícias ligadas ao mundo do entretenimento, e como elas se transformaram a cada nova republicação, a cada novo control+c control+v, em “fatos” cada vez mais assertivos e distantes da notícia original. Acompanhe os monstros se criando:

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No dia 09 de abril, o produtor Mark Ronson, que está trabalhando em duas ou três faixas do novo álbum de Paul McCartney, deu uma entrevista à revista Rolling Stone tentando tirar a pecha de “retrô” que paira sobre seu nome. Ronson foi DJ na festa de casamento de McCartney em 2011 e contou na entrevista que certo dia no estúdio, o ex-beatle surgiu com algumas “coisas funk-moombahton pós-Bonde do Rolê” e lhe perguntou: “Como você consegue tirar esse tipo de energia do som?” e usou Usher como exemplo do que chamava de “energético”.

No dia seguinte, a notícia saiu no New Musical Express da Inglaterra como “baile-funk e Usher inspiram o novo álbum de Paul McCartney”.

O ClubNME brasileiro puxou a brasa pra sardinha brasileira. Era assim o seu lead: “Quem diria que Paul McCartney está apaixonado pela sonoridade do funk (sim, o carioca!) e do Bonde do Rolê? Mas são essas as influências que Mark Ronson, produtor do novo disco do ex-Beatle, revelou.”

No UOL, a gente descobre que “Paul McCartney está ouvindo funk carioca como inspiração para novo disco”.

O Bonde do Rolê, que nem é carioca, claro, aproveitou a demência coletiva, tirou foto atravessando alguma faixa de pedestre à moda de Abbey Road e ainda produziu um remix de “Get Back” pra provocar.

No dia 13, o amigo Ricardo Schott no jornal O Dia já estava algumas curvas na frente, entrevistando o DJ Sany Pitbull e Mr Catra pedindo dicas para que o velho roqueiro se inteire no movimento do funk carioca. Valeska Popozuda, por exemplo, se ofereceu para levá-lo ao morro do Alemão.

Aí a coisa degringolou. Na Mix TV a notícia era a de que “O produtor Diplo contou para a Rolling Stone que o ex-beatle Paul McCartney chegou em seu estúdio esses dias com uma música do Bonde do Rolê e perguntou: “Como a gente consegue esse tipo de energia?”. Sim, um dos músicos mais aclamados da história do rock estava ouvindo um brasileiríssimo funk”

Àquela altura, alguém já havia lembrado do inacreditável projeto Let it Baile que o não menos inacreditável João Brasil perpetrou em 2010, de mash ups do álbum Let it be com músicas do MC Buiu, Perlla e Deize Tigrona.

Segundo a Caras de alguns dias depois, “Bonde do Rolê conquista Paul McCartney”. Pedro D’Eyrot, do grupo curitibano, declarou: “Me sinto a nova Linda McCartney!”

Não se espante, se depois de tanta loucura, alguém agitar um encontro do ex-beatle com o trio de Curitiba. A farsa, às vezes, se repete como história.

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A outra notícia mutante é mais séria e envolve a vocalista do grupo Calypso, Joelma. No dia 30 de março, a musa paraense deu uma entrevista à coluna social da revista Época e, entre outras coisas, falou sobre sexualidade: a sua e a dos outros. “Tenho muitos fãs gays, mas a Bíblia diz que o casamento gay não é correto e sou contra”. Acrescenta que, se tivesse um filho nessa situação, “lutaria até a morte para fazer sua conversão”. “Já vi muitos se regenerarem. Conheço muitas mães que sofrem por terem filhos gays. É como um drogado tentando se recuperar”. O título da entrevista foi um tanto malandrinho: “Joelma compara gays a drogados e diz ser contra o casamento homossexual”.

No UOL, a frase virou “gays são como drogados em recuperação”. No dia seguinte à publicação da entrevista à Época, o portal compilou a reação de artistas contrários à cantora paraense.

O coluna “Retratos da Vida” do jornal Extra “contribuiu” com a história: “A nuvem está negra para Joelma e Chimbinha da Banda Calypso. Os pedidos para shows com os astros da música brega despencaram após a mudança de escritório. Abalado, o cantor se consultou com um psiquiatra e iniciou um tratamento com antidepressivos.” O texto ainda dizia que a declaração de Joelma levou problemas ao casamento deles, já que o guitarrista não compartilharia da opinião da cantora.

O ator José de Abreu, no Twitter, declarou que também seria deprimido se tivesse de conviver com Joelma. Me lembrei do exército de cantores e artistas que, nos anos 70, se negavam a subir em um mesmo palco que Simonal porque “não dividiam palco com dedo-duro”. Era uma ótima hora pra todo mundo se mostrar engajado.

A assessoria da banda Calypso imediatamente emitiu comunicado dizendo que as palavras de Joelma foram distorcidas pela Época. Negou a depressão de Chimbinha e os problemas matrimoniais com Chimbinha. Mas no mesmo dia o sempre intrépido jornal Extra trouxe uma “novidade” ao caso de “inferno astral” do grupo paraense: “Filme sobre Calypso sobe no telhado”. Dizia o texto: “A produção do longa-metragem já vinha encontrando dificuldades de levar essa história para a tela, e a situação se agravou com a polêmica em torno das declarações recentes da cantora. O fato é que agora ninguém mais quer vincular o nome à banda, e o projeto tornou-se inviável.” Note a palavra “fato”. A única fonte procurada foi a produtora Vira-lata, que negou o cancelamento do filme. De onde surgiu essa notícia então? Mistério.

Aí a imprensa fez a festa: o Estadão contou que “Depois de Joelma se dizer contra o casamento gay e comparar homossexuais a viciados em drogas, o filme da banda Calypso não será mais realizado “até segunda ordem”. Sem checar a informação, limitou-se a dizer que a fonte era o jornal Extra.

A coisa continuou rolando: no dia 16 de abril o “Blog do Marrom”, ligado ao jornal Correio da Bahia afirmou que a banda Calypso teria sido limada das festas juninas de Jequié, Bahia, devido às “declarações da cantora sobre o casamento gay e os homossexuais em geral”. O “fato” chegaria às raias do insólito, já que, segundo a nota, os paraenses teriam sido substituídos justamente por Daniela Mercury, que, no mesmo período, assumiu publicamente seu relacionamento com uma mulher. Tanto a assessoria de Daniela quanto a do Calypso negaram a “informação” que, no entanto, continua a correr redes sociais como uma libelo contra o preconceito e a homofobia.

Aguardem desdobramentos de ambos os casos.

Ontem falei pessoalmente para o diretor do filme Isto é Calypso, Caco Souza, com um velho instrumento de comunicação chamado telefone. Ele, apesar de ter ligado aos jornais que deram o “furo”, até hoje não sabe de onde surgiu a história do cancelamento do filme. Caco disse que a produção segue em ritmo normal, tão fácil e tão difícil como sempre havia sido, e que a única reação de um dos cotistas já contratados foi um telefonema, confuso com as notícias de que o filme que sua empresa estava apoiando, ter sido cancelado. O cotista ficou aliviado em saber que tudo não passava de mais um boato espalhado pela imprensa brasileira como fato.