Simonal: eu não me esqueci de nada
O historiador Gustavo Alonso teve influência e participação decisivas durante os primeiros estágios de pesquisa do meu livro Nem vem que não tem: A vida e o veneno de Wilson Simonal. Antes mesmo que eu assinasse contrato de publicação com alguma editora, Max de Castro já havia comentado sobre um trabalho de conclusão do mestrado da Universidade Federal Fluminense, Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical, de 2007. Max me falava impressionado sobre o nível de detalhamento da pesquisa de Alonso, tanto a partir de arquivos de revistas e jornais da época quanto em cima de documentos policiais e jurídicos. Max teve a decência de não me emprestar o trabalho sem o consentimento de Alonso e Alonso teve a gentileza imensa de me enviar uma versão ainda mais atualizada da obra.
Eu não sabia, mas Gustavo Alonso já havia assinado contrato com a editora Record para transformar seu TCC em livro. Poderia perfeitamente ter feito segredo de sua pesquisa, e me atrasado bons meses do meu trabalho, mas dividiu seu trabalho com uma generosidade que não se vê por aí. Assim,embora eu já tivesse tornado público meu agradecimento a ele, vai o reforço aqui, de novo.
Comprei há alguns dias meu exemplar de Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga (Editora Record) e, já posto meus agradecimentos ao autor, quilômetros acima de qualquer senão, queria dar uma polemizada rápida em um trecho que não constava na edição que eu tinha em mãos, justamente o que trata de Nem vem que não tem.
No capítulo “O velório da memória”, Alonso fala sobre como Simonal foi tratado pela imprensa – desde o evento de sua prisão, em 1974, até o que chama de redescoberta, já no final dos anos 2000. Reserva palavras carinhosas tanto para o filme Simonal: Ninguém sabe o duro que dei quanto para o meu Nem vem que não tem, embora tenha ressalvas pontuais a um e ao outro. Alonso diz que meu livro “compra a tese de que Simonal teria sido vítima de sua própria ingenuidade política e que teria sofrido ‘preconceito’ racial.” Outro dos “pontos problemáticos” seria o de que o formato de uma “biografia tradicional” não dá conta “dos problemas que estão além das disputas pelas verdades individuais” ou – explicando – a biografia “tende a sobrecarregar os indivíduos por uma construção que está além de suas próprias possibilidades”. Alonso diz que, no afã de “mostrar a ‘verdade verdadeira’ dos fatos”, eu inocento a sociedade junto com o cantor e dou a entender que “o único crime teria sido o civil, não o político”. Segundo o historiador, eu elegi como alvo o jornal O Pasquim, a “inteligência ipanemense” com o objetivo de, ao criar um novo bode expiatório, permitir que Simonal pudesse novamente entrar para a história louvável da MPB. “Esquece-se [o autor Ricardo Alexandre] que a tal ‘ipanemia’ também ajudou a criar a MPB, alvo tão almejado por aqueles que querem colocar Simonal de volta neste pedestal.”
Uepa! Como diria Keith Richards em sua autobiografia, “eu não me esqueci de nada”.
Sério: cada ponto aventado por Alonso foi muito considerado e reconsiderado por mim e, num segundo momento, por mim e meu editor, o grande José Godoy. Acontece que meu livro não é uma tese. Da mesma forma que eu não espero que um trabalho de sociologia ou de história se valham das mesmas ferramentas que um trabalho jornalístico, imaginava que os sociólogos e, no caso, os historiadores soubessem que jornalista que sai de casa com a pauta pronta está fazendo mau jornalismo. E minhas ferramentas são as mais de 300 entrevistas que fiz com mais de uma centena de pessoas que conviveram intimamente com Simonal; são os jornais de época, os arquivos pessoais e públicos e os documentos oficiais – de certidões de casamento à ficha no Serasa, passando pelo processo criminal que o colocou atrás das grades em 1974. E meu trabalho foi dispor toda essa pesquisa ao meu leitor, transformando confusão em clareza, como manda o jornalismo. Se Alonso, ao analisar tudo, entendeu que O Pasquim era o grande culpado de tudo, é uma conclusão aceitável, como também foi aceitável a conclusão de diversas outras pessoas que acharam que o livro absolveu O Pasquim, porque mostrou como eles agiram no calor do momento sem acesso a documentos oficiais que só foram tornados públicos nos anos 1990. Mas não venham me dizer que eu elegi O Pasquim como isso ou aquilo porque eu não o fiz.
Acho pouco provável, da mesma forma, que eu tenha (mesmo que inconscientemente) tentado incluir Simonal no panteão da MPB. Quem conhece meu corpo de ideias sabe o tamanho do desprezo que eu sempre alimentei pela “louvável MPB”. Meu primeiro livro, Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80 é quase todo sobre isso. E não é que eu tenha me esquecido de que a inteligência ipanemense ajudou a criar a MPB; é que eu não concordo com isso. Quem assistiu ao documentário Uma noite em 67 pode comprovar: dois anos antes do jornal O Pasquim lançar seu primeiro número, em tempos em que a cultura brasileira era regida de São Paulo, todas as cartas da “louvável MPB” já estavam na mesa. Chico era o tímido inteligente, Caetano o antenado pop, Edu Lobo o sofisticado etc etc etc. Como isso se deu? Não sei, adoraria saber, mas não será em cima de achismos que essa resposta surgirá.
Por último, queria comentar algo para o qual Alonso atentou com muita perspicácia, mas como sendo um defeito – e eu considero uma virtude, perseguida durante todo o trabalho do livro. Nem vem que não tem realmente deposita sobre as costas das pessoas as decisões fundamentais da história. Não porque eu estivesse em busca da verdade verdadeira (ou mesmo que eu acreditasse em existência de uma verdade verdadeira), nem porque quisesse transformar um crime político e crime civil. Mas porque eu realmente acredito que o que determina o rumo da história são as respostas que nós, seus personagens, damos aos desafios que se impõem a nós. Evidentemente, não somos as únicas forças causais, e cabe ao narrador revesti-las de todo o contexto social e político da época. E pesquisar, entrevistar mais e mais, contrapor versões, harmonizar, questionar, re-entrevistar até que as subjetividades sejam minimizadas. “Apurar”, como se diz no jargão. Há circunstâncias, que precisam ser esmiuçadas, analisadas e explicadas, mas quem conduz a história são as pessoas e não essa força invisível chamada “sociedade”.
Por exemplo: é possível ler as decisões artísticas de Simonal longe da influência que seu pai teve sobre o cantor? É possível entender seus descaminhos nos anos 1970 pensando que os problemas familiares não o afetaram em nada? Será que Simonal teria se enrascado tanto em 1971 se não tivesse perdido todos os seus principais colaboradores? É possível entender as relações profissionais que Simonal estabeleceu no final da década de 1960 sem entender os laços pessoais que ele montou em torno de si? Acho pouco provável. Aliás, vou além: se Simonal não tivesse tantos fantasmas, do passado e contemporâneos, a assombrá-lo, se não tivesse uma agenda artística tão vinculada a seus dilemas pessoais, eu acredito que ele conseguiria, sim, reconduzir sua carreira a bom tento, mesmo depois do evento com o Dops. Mas esta é uma opinião, não é uma tese que procurei defender no livro, tanto que no livro não está.
Reli o capítulo “Quem não gostar e for do contra que vá pra…”, que trata do envolvimento político do Simonal e não achei nenhuma vez a palavra “ingênuo”. Pelo contrário, o texto afirma que “repetir que Simonal era uma pessoa apolítica, alienada e ignorante dos rumos da direita e esquerda brasileiras (…) pode funcionar para justificar – ou explicar – boa parte de seus tropeços (…), mas não é verdade”. Pessoalmente, não acho que Simonal tenha sido vítima de sua ingenuidade política. Acho outras coisas, acho muitas coisas, mas duvido que o leitor vá conseguir encontrar sinais de indução no livro. Se o fizer, como Alonso fez, não será baseando-se no que escrevi, mas no que ele achar que eu achei.
Evidentemente, o livro tem mais 469 páginas que não fazem menção a mim, muitas são de tirar o fôlego de tão boas. O registro da luta declarada contra a pilantragem ou a construção da imagem de “resistente ideal” de Chico Buarque são minhas favoritas. Como me escreveu no Facebook o jornalista mineiro Renato Vieria, “os dois livros são bem diferentes, servem para discussão”.
Então faça assim. Compre Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga aqui, aqui ou aqui. E compre Nem vem que não tem: A vida e o veneno de Wilson Simonal aqui, aqui ou aqui. Dê um para seu melhor amigo e fique com o outro, e passem 2012 discutindo à beça.
Feliz natal!
Ricardo,
não foram poucas as vezes em que ao ler o livro do Gustavo também ia consultar o seu. Enquanto o livro dele trata de questões que tem a ver com o Simonal, mas sob a percepção da sociedade e da classe artística, o seu pega a percepção do homem Simonal. Acredito que um complementa o outro justamente pelo seu ter uma pegada “in” e o do Gustavo ter uma pegada mais “out”.
Um abraço e Feliz Ano Novo!