Recebi um áudio, via WhatsApp, com a voz de um rapaz se dizendo “espírita kardecista” e pedindo para que sua mensagem fosse espalhada, de celular em celular, “até chegar no Jorge Kajuru”. Não sei porque o Kajuru, mas não importa. O áudio parecia ser de um homem educado, de fala articulada, que dizia portar “notícias do mundo espiritual” a repeito de um “enorme movimento espiritual através de demandas, pedidos, trabalhos, de toda ordem de manifestação espiritual negativa” contra “o nosso presidente Jair Bolsonaro”. Segundo o rapaz, o modo de interromper essa ação seria “manter o máximo de oração por Jair Bolsonaro e sua família”.

Não vou colocar o link aqui porque o rapaz parecia sincero no que dizia e não gostaria de fornecer espaço para chacota contra a fé alheia. Até porque ele está certo: os que temos fé sobrenatural, temos mesmo de orar pelos nossos governantes.

O que queria compartilhar é algo que a mensagem me despertou.

A ideia de que somos marionetes dependurados em fios que descem desde o mundo espiritual é muito comum em diversas tradições religiosas. O entendimento do rapaz espírita é parecido, por exemplo, com várias correntes do neopentecostalismo brasileiro, que ensinam que somos peões em meio a uma grande “batalha espiritual” em curso em todas as esferas do cotidiano. Segundo essa crença, haveria espíritos bons e maus no ar, na mobília da casa, na comida preparada por gente de outra crença, até nos eletrodomésticos. (Em outra oportunidade conto sobre a mulher que pediu para orar para afastar o diabo do meu refrigerador).

Da mesma forma, haveria hostes espirituais batalhando ao redor do destino das nações. É essa a visão defendida pelo deputado Marco Feliciano a respeito da África no vídeo abaixo. Feliciano é pastor em uma igreja chamada Catedral do Avivamento, ligada de alguma forma à Assembleia de Deus:

 

 

Transferir para o campo espiritual a coordenação do que acontece no mundo material é uma saída popular e confortável por dois motivos. Primeiro, porque tira de nós a responsabilidade sobre como administramos o universo visível (por exemplo, sobre como o homem branco e cristão agiu sobre o continente africano, como bem lembrou o presbiteriano Hermes C. Fernandes no vídeo acima). Em segundo lugar, acreditar que os “movimento espirituais negativos” estão nos perseguindo justificaria nossas reações brutas e violentas – afinal, estamos apenas zelando pelos interesses do “bem contra o mal” e nós, claro, sempre vamos achar que estamos do lado do bem. Para as lideranças religiosas, a lógica da “batalha espiritual” tem uma utilidade adicional: a fidelidade nas contribuições e na assiduidade que afastaria “o devorador” e não daria “brecha ao inimigo”. Nossa forma de pelejar nessa guerra espiritual é estando atrás do pastor e sob a proteção da igreja e do dízimo.

Bem, a espiritualidade segundo Jesus Cristo é algo não apenas diferente, mas oposta a isso.

Na carta que escreveu aos cristãos da ilha de Éfeso, Paulo dedica os últimos capítulos para falar sobre relacionamentos interpessoais. Ele recomenda que, por exemplo, filhos obedeçam aos pais; que os pais não irritem os filhos; que os trabalhadores obedeçam a seus chefes; que os chefes jamais usem de sua hierarquia para ameaçar seus empregados. Paulo ensina ainda que uns devemos nos sujeitar aos outros, que as mulheres devem respeitar seus maridos e os maridos se entregarem por suas mulheres. E por que? Porque “nossa luta não é contra pessoas, mas contra poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais.” (Efésios 6.12)

Há duas maneiras de ler esse texto. A primeira é a infantil, já mencionada, de que somos peças num tabuleiro espiritual jogado por Deus e pelo diabo em equilíbrio de forças. Vem dessa visão a ideia de que haveria um espírito ruim sobre meu refrigerador ou no acarajé que comprei de uma baiana, ou repousando sobre a África do Sul ou rondando um presidente bem intencionado de algum país sul-americano. Se essa visão fosse correta, Paulo não recomendaria que seus leitores tomassem a responsabilidade de tratar bem suas esposas e esposos, empregados e patrões, pais e filhos. Não recomendaria que os seguidores de Jesus se afastassem de “obscenidade” e de “conversas tolas, gracejos imorais inconvenientes” (Efésios 5.4), que cuidassem da língua e de como tratamos uns aos outros. Bastaria que os cristãos se esforçassem em mais e mais oração, em cantar louvores, em ler a Bíblia, dar o dízimo ou qualquer outro ato de justiça – ou, como prefeririam os pastores de hoje em dia, bastaria que corressem para debaixo de seus líderes ou para dentro de suas igrejas.

Pelo contrário, Paulo ensina que a responsabilidade é nossa. Eu e você é que estamos movendo o mundo espiritual com nossas palavras e com nossas ações. Quando você se deixa levar por obscenidades ou gracejos inconvenientes, quando você é imoral, quando você humilha ou subjuga alguém, você apenas aparentemente está lidando com o mundo físico e com pessoas de carne e osso; na verdade, você está movendo forças invisíveis e poderosas. Quando você, empresário, trata seu empregado como um ser inferior, ou quando você, esposa, é uma mulher rebelde, ou quando você, esposo, é um homem omisso de suas responsabilidades, ou quando você é um filho desobediente, apenas superficialmente está “lutando contra a carne e o sangue”. Na verdade, está atraindo ventos ruins sobre você e sobre os que estão a sua volta.

“Vento” é a tradução literal da palavra “pneuma” que também é traduzida como“espírito”. Às vezes a narrativa bíblia fala de espíritos sobrenaturais, mas às vezes fala de consequências naturais para nossas palavras e ações. Ventos que nós movemos com nossas mãos, com nossos pés, nossos olhos ou com nossa língua.

É por isso que Jesus diz, em seu Sermão do Monte, que “bem-aventurado são os pacificadores” e não os instigadores. Bem-aventurados os humildes e não os ostensivos. Bem-aventurados os misericordiosos, e não os justiceiros. Bem-aventurados os que choram, e não os que zombam dos que choram. Porque Jesus está propondo para seus discípulos um outro tipo de gente, com um caráter diferente daquele que a sociedade nos propõe. Jesus propõe outros valores, um novo ser humano que ele quer formar em nós, para movimentar outros ventos por onde passarmos.

Que tipo de vento movimenta um homem que, com o principal microfone de um país em mãos, declara que quer “fuzilar a petralhada”? Que zomba da esposa de um outro presidente? Que escarnece da morte do pai do presidente da OAB? Que acusa médicos de fazer parte de células guerrilheiras mesmo admitindo não ter provas? Que usa um canal oficial para fazer “gracejos imorais inconvenientes” com seu próprio ministro da justiça? Que faz sinal de arma numa marcha para Jesus? Tudo isso tem aparência de discussão política, de pequenezas materiais, de ideologia contra ideologia, mas rapidamente estamos movendo ventos sombrios sobre nós mesmos e sobre um país.

Você pode concordar com Paulo Guedes de que o estilo de Bolsonaro “não é uma técnica” midiática, conforme o ministro declarou no foro Economia do Brasil realizado no início de setembro em Fortaleza: “O presidente é uma pessoa transparente, autêntica”, disse o ministro. “Você pode gostar ou não gostar, mas ele não está preocupado com isso. Isso quer dizer que autenticidade, falar a verdade, ser transparente, são valores que o brasileiro está pedindo. Tem muitos políticos com bons modos e péssimos princípios e tem alguns políticos que têm maus modos e bons princípios.”

Você tem todo o direito de pensar como Guedes [diz que] pensa, mas não se for um seguidor de Jesus de Nazaré. Segundo o apóstolo Paulo, você não tem a opção de “não estar preocupado” com os outros. O marido cristão não tem o direito de, por exemplo, humilhar sua esposa e depois minimizar sua culpa se dizendo “sincero” ou “transparente”. Os pais cristãos não podem induzir os filhos à ira, mesmo com a desculpa de que “o brasileiro está pedindo gente fale o que pensa”. Os patrões que não devem ameaçar seus empregados independentemente da “autenticidade” ou da “transparência” de sua ameaça. Na espiritualidade segundo Jesus Cristo, ter postura e ser um pacificador não são virtudes que você possa escolher na prateleira no lugar de ter princípios corretos – ou vice-versa.

Você pode celebrar a “valentia”, a “transparência” e a “autenticidade” de um chefe de estado que usa do discurso de abertura da assembleia da Organização das Nações Unidas para pregar a dissenção, para atacar países gratuitamente, para comprar a antipatia da imprensa internacional e espalhar informações falsas. Mas não diga que você, ou ele, são seguidores daquele que pregava a pacificação, a verdade, que nos enviava na difícil missão de não pagar o mal com o mal; daquele que era conhecido por fazer o bem e não por espalhar a discórdia. Aquele que ensinou um novo jeito de se relacionar com o imaterial que era definido por seus discípulos como “cuidar dos órfãos e das viúvas”. Que nos queria maduros o suficiente para responder por nossas decisões, pelo que fazemos e pelo que falamos. A movermos bons espíritos, independentemente dos maus ventos à nossa volta.

Que nos ensinava levar a paz por onde entrássemos e a ter palavras de bênção em nossa boca, e não maldição.