Todos temos algo a dizer sobre o filme do Porta dos Fundos no Netflix, A Primeira Tentação de Cristo.

Se nos importássemos mais com a Bíblia do que com o Netflix, talvez encontrássemos dois pontos muito intrigantes no episódio que narra o período de quarenta dias em que Jesus esteve no deserto, jejuando e orando, e foi tentado pelo diabo. Dois pontos que falam imensamente sobre o mundo, ou o Brasil, de 2019.

O episódio está registrado em Mateus 4.1-11.

O primeiro detalhe é que, depois de jogar com a fome de quem jejua, o diabo usa a Bíblia para tentar Jesus. Repito: O DIABO USA A BÍBLIA PARA TENTAR quem tem fé. Ele cita, direitinho e com o maior respeito, o Salmo 91: “Se você é mesmo o Filho de Deus, lança-te do pináculo do templo porque está escrito ‘Aos teus anjos dará ordens a teu respeito e eles te tomarão nas mãos”.

No mundo da religiosidade mágica e infantil, nós aprendemos que a Bíblia afugenta o diabo como a luz do sol afugenta o vampiro. Mas aqui, nos textos sagrados, o diabo aparece recitando versículos com naturalidade e intimidade. Parece que Deus quer nos ensinar a sermos menos tolos, a olhar com desconfiança para todo que se apresente recitando versículos bíblicos, usando adereços de cristão, mas jogando em benefício próprio.

O ano de 2019 termina como um ano triste para o protestantismo brasileiro, o ano em que nos vendemos por tão pouco, o ano em que não apenas fomos manipulados por qualquer espertalhão recitando versículos (ou mesmo versículo, no singular), como NOS OFERECEMOS para a manipulação.

Jesus ensina a olhar para os frutos muito mais do que para as palavras. Mas em 2019, corrupção, nepotismo, abuso de poder, violência, palavras de ódio, milícias, desvios e lavagem de dinheiro, privilégios com dinheiro público, divisão em vez de pacificação, nada disso importou se o político recita versículo e encerra entrevistas mandando jornalistas lerem “O Livro de Paulo”.

Até porque nas nossas igrejas ninguém nos incentiva a descobrir que o “Livro de Paulo” nem existe.

Outro ponto intrigante na narrativa bíblica da tentação de Jesus é que a provocação final de Satanás tem a ver com poder. O diabo mostrou “todos os reinos do mundo” a Jesus “e a glória deles” e propôs: “Tudo isso te darei, se, prostrado, me adorares”.

É curioso como o movimento evangélico brasileiro esperneia atrás de poder, conforto e atrás de seus próprios direitos. Porque o “evangelho” que tem sido ensinado há 30 anos pelas igrejas da prosperidade é aquele em que Deus negocia com o fiel e lhe promete fama, fortuna, status e poder. É impossível não sentir um calafrio de pavor quando eu noto que a barganha, o “tudo isso te darei se prostrado me adorares” não é uma frase que está na boca de Deus, mas na boca do diabo.

Na boca de Jesus estão frases como “no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, porque eu venci o mundo”. No mundo, vocês serão resistência, e não situação. Serão contracultura, e não cultura. No mundo, haverá grupos humorísticos fazendo arte provocadora de alta qualidade (“A Vida de Brian”) e de qualidade rasteira (“A Primeira Tentação de Cristo”). No mundo, vocês vão ser perseguidos por causa de sua fé, e não por causa de atentados a bomba. No mundo, haverá longos períodos de martírio. Mas tenham bom ânimo, porque o mundo é um ponto superado. O mundo é só um lugar onde a gente vive mostrando que há uma realidade possível mais justa e mais cheia de amor – e não uma realidade ainda mais cheia de preconceito, intolerância e raiva.

O Deus da Bíblia é um Deus de graça, e não de barganha. É um Deus cujo grande apelo de marketing é o “negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” e não o “eu te darei canais de TV, cadeiras no STF, privilégios tributários, shows em estádio, leis de renúncia fiscal e espaço obrigatório na cultura nacional empurrado goela abaixo”.

Contra a tentativa final do diabo, Jesus respondeu: “Vá embora, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás”.

Que em 2020 a gente saiba, pelo menos, discernir a voz de Deus da voz do diabo negociando com a Bíblia na mão.

Feliz ano novo.